Saraband
Liv Ulman, Erland Josephson, Borje Ahlstedt, Julia Dufvenius
2003. Estréia 13 de janeiro de 2005.
Bergman
Nasceu em 14 de Julho de 1918 em Uppsala. O pai era pastor luterano, confrontado com a religião desde muito jovem. De 1934 a 1944 na universidade de Estocolmo dirigiu 20 peças de teatro. De 1945 a 2005 escreveu e dirigiu inúmeros peças de teatro, argumentos para ficções e documentários. Dirigiu entre outros Mônica e o desejo (54), Morangos Silvestres (55), O sétimo selo (62), Silêncio (63), Persona (66), A hora do Lobo (57), Gritos e Sussurros (67), Cenas de um casamento (73), O ovo da serpente (76), 77 Sonata de Outono (77), Da vida das marionetes (80) e Fanny e Alexander.em 1982.
Saraband
Segue a estrutura da dança homônima do século XVII. Seus quatro personagens revezam-se em cenas sempre aos pares, em encontros distintos em dez capítulos, um prólogo e um epílogo. Saraband traz consigo a suite para viloncelo solo de Bach (em Gritos e Sussurros também); a 2ª suite “Trilogia de Deus” de Bruchner,; Brahmas; Alban Berg. Sarband é título de uma obra que Bergman chamou de “ um concerto grosso para quatro instrumentos”. Andamos pelo barroco, quando a dança perdeu as conotações lascivas que levaram à sua proibição na Espanha do século XVI, para se tornar uma vigorosa manifestação social e cultural.
Sugiro que assistam Saraband e só depois continuem a leitura destas anotações.
SARABAND – Música ou filme?
Em projeção digital, numa sala do MIS de Campinas. Bergman na sala escura. Para quem tem menos de 30 anos, eis quase um objeto “não identificado”, com exceção em ciclos, em cineclubes, em museus, mas com uma espécie de “filtro”, “de rótulo” protetor do passado. Para quem já era adulto nos anos 70 (meu caso), SARABAND aponta para um tempo poderosamente sugestivo.
Bergman, aos 86 anos realizou Saraband, era o ano de 2003. O filme foi lançado na Europa em 2005. Saraband foi gravado em alta definição (HD) e só liberado para exibição, com a permissão de Bergman, em salas com condições para projeção em HD.
Saraband é uma dança. Será que Bergman cumpriu o que disse quando afirmou que Fanny e Alexander (1982) seria seu último filme? Bergman retoma com Saraband o filme Cenas de um casamento (1973)? Será? Vejamos, os personagens são os mesmos e os atores também: Marianne é Liv e Johan é Erland - personagens recuperados de 1973 - poderíamos escolher este eixo para pensarmos Saraband. Um segundo poderia ser questionar a escolha de Bergman pelo cinema de alta definição, em detrimento da película de 35mm: a fotografia do filme consegue criar uma diegese de cumplicidade e intimidade, através da utilização do sistema digital, o que se perde em textura, se ganha em definição.
Johan e Marianne são personagens da ficção (Cenas de um Casamento, de 1973 e já se passaram 30 anos), sabemos que ocorreu uma elipse na estória do casamento dos dois personagens, não sabemos mais nada, na ficção da ficção a estória se inicia. Portanto, vemos o tempo cindir, e assim escolhemos pensar as cenas, descrever as imagens, tentar classificá-las, recompô-las à pensamento.
COMPOSIÇÃO
Predomina em Saraband o primeiro plano. O que não é nenhuma novidade no cinema de Bergman - o idílio de Bergman com os primeiros planos é antigo. O próprio Bergman reconhece características do primeiro plano, neste testemunho de Bibi Anderson e Liv Ulman, por ocasião da filmagem do filme Persona:
[ ...] fizemos funcionar a moviola e Liv disse: você viu, a Bibi está pavorosa! E Bibi disse: não, não sou eu que estou pavorosa, é você.
(DELEUZE, 1983, p.133).
O primeiro plano comporta o rosto e o busto, com suas partes duras e macias, sombrias e iluminadas, foscas e lisas, granulosas e angulosas, curvas e retas. O primeiro plano comporta o rosto. O primeiro plano de um rosto diante de uma flor, de um precipício e do sorriso de uma criança não os explica – nós espectadores sentimos afetos, não sabemos o que dizer, interrompe-se a ação – vemos personagens ver, sentir imagens matérias de puro afeto. Como são compostos os primeiros planos de Saraband?
Por composição de um plano em cinema, tratamos dos conceitos de enquadramento, decupagem e montagem.
Enquadramento, segundo Gilles Deleuze, é uma reunião de qualidades de sensações, por isso sentimos as partes do rosto (macias ou duras, lisas ou rugosas, etc.). Por outro lado, é também imagem de sentimentos, percebemos rostos se endurecerem, se enternecerem, se afastarem e voltarem a se encontrar.
Ainda pensando o primeiro plano, consideramos as imagens como signos, trazendo consigo um mundo não pelo representam abstratamente, mas pelos pontos que juntam e por isso é importante destacar Charles Saenders Peirce em seu estudo sobre a classificação dos signos e a primeiridade:
Há certas qualidades sensíveis como valor magenta, o odor da essência de rosas, o som do apito da locomotiva, o saber do quinino, a qualidade da emoção experimentada ao assistir a uma bela demonstração matemática, a qualidade dos sentimento de amor , etc. não me refiro á impressão ao fazer neste momento a experiência dos sentimentos, seja diretamente na memória ou na imaginação, isto é, algo que implique estas qualidades como um de seus elementos . Refiro-me ás próprias qualidades que, em si, mesmas, constituem puros poder- ser, não necessariamente realizados. (DELEUZE, 1985, p. 136).
Segundo Deleuze, ainda diria Peirce:
Uma cor como o vermelho ou o violeta, um valor de alguma coisa brilhante ou opaca, uma potência como algo cortante ou flexível, uma qualidade , por exemplo, ser duro ou mole, só remetem a si mesmos no primeiro plano. As qualidades não como impressões , mas as próprias qualidades em si mesmas. (DELEUZE, 1985, p.136).
Em Saraband, os primeiros planos dos encontros dois a dois dos personagens nos dez atos, no prólogo e no epílogo são corrediços, um acaba de chegar e o outro já se deu, portanto, sobre a decupagem podemos dizer que a ausência da profundidade de campo faz com que os planos médios e os planos gerais sejam tratados sem profundidade, isto é suprimidos da perspectiva de um ponto central. As distinções herdadas do espaço tendem a desaparecer. Triunfa a perspectiva temporal, esmaga-se a terceira dimensão (a perspectiva), portanto, conectam-se os espaços e suas dimensões em relação com o tempo. Existe profundidade de campo, mas apenas para mostrar um personagem apagar-se ou aparecer e não o espaço onde ele está, exemplificando podemos descrever a cena em que pai e filho conversam na biblioteca. As três paredes estão repletas de livros e a quarta parede é a da porta de entrada, que é imediatamente fechada para a cena começar - não há o extra-campo - planura ideal da imagem.
E por fim, a montagem afetará todos os planos, eles se tornam casos particulares da primeira seqüência do filme, um único plano seqüência de 2horas de duração - no final voltamos ao começo, mas não como ciclo ou circularidade - Marianne está nesse prólogo de Saraband, sentada olhando fotos que estão em cima de mesa desordenadas, ela está num presente falando com a alguma coisa que não vemos, parece falar com a câmera, ou com o espelho, ou com um duplo, ou conosco. Marianne não está no passado e nem no futuro – nós só podemos dizer isto porque ela nos apresenta a presença de alguma coisa? Que coisa?
Saraband nos apresenta lugares: em primeiro lugar nos instalamos no passado, no conjunto de fotografias jogadas na mesa ; em seguida Marianne escolhe uma e depois outra – ali está escondido a lembrança, encolhida na foto esperando por ela ; e por fim a procura das lembranças se concretiza por saltos no passado contraído da imagem- foto, e depois no presente que passa, e Marianne está envolvida na coexistência de vários tempos. Marianne, na bela fórmula de Santo Agostinho: num presente do futuro, num presente do presente e num presente do passado. Mariane implicada na situação de olhar fotos, de falar e de criar lembranças. Estamos atrás da câmera (no espaço fora de campo) em direção ao futuro e tudo isso simultâneamente– do afeto (primeiros planos) ao tempo.
Chegamos à coisa que não mudava e que estava presente - o tempo. Sentimos o tempo em Saraband - a partir do prólogo as dez cenas libertam-se através da câmera, das ações e do movimento, como primeiros planos de rostos e de coisas; personagens e espectadores juntos se tornam visionários de um conto de fada - das fotografias ao filme no filme como condição de possibilidade de uma estória entre personagens e espectadores. O diretor encontra o que foi retido na foto ora introduzindo vazios, outras vezes espaços em branco refazendo-as. Chegamos ao epílogo, Marianne não é a mesma, ela continua imóvel, no mesmo lugar, sob a mesma luz dourada entrando pelas cortinas, mas com outra roupa, sugerindo passagem de tempo.
O tempo aparece diretamente em Saraband, inicialmente através das fotografias dando vida à ficção, e depois na própria ficção (a cena preciosa em que Marianne e Johan estão nus na cama) para dar vida à foto. O tempo saiu do eixo.
Presenciamos um acontecimento do ponto de vista de um ato de presentificação. Um ato de presentificação é uma narração que fazemos de nossa ação a nós mesmos ou a outras pessoas no momento em que a realizamos. A simultaneidade dos presentes (presente do futuro, presente do presente e presente do passado) no achatamento da profundidade, na planura da imagem, não como uma simples sucessão de presentes que passam, mas ao mesmo tempo um presente do passado, um presente do presente , e um presente do futuro tornam a vida de Marianne e Johann um único acontecimento, ou simplesmente uma vida.
Ao terminar a Saraband de Bergman, podemos dizer que vidas passaram por ali.
Por Iara Helena Magalhães
ttp://br.youtube.com/watch?v=Y1hzDzAvJOY
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